sexta-feira, 21 de março de 2008

MONTES DE FOGO, VENTO E SOLIDÃO

Montes de fogo, vento e solidão

Exposição inspirada no livro de António Tabucchi "Mulher de Porto Pim" - 1991











Não valerá a pena recitar a biografia – vivíssima, diga-se de passagem – de Ferreira Pinto.
Ao longo dos anos e desde que em Angola iniciou a sua carreira de artista plástico, esses factos assim como o seu enquadramento no nosso mundo das artes têm sido ditos por outros apreciadores da sua implacável originalidade. Mas não poderemos devidamente perceber por inteiro o seu percurso artístico sem primeiro lembrar este outro facto fundamental, este percurso de vida que tem, digamos assim, emoldurado toda a sua arte, que lhe dá vida, que lhe transforma a pintura num acto de universalismo autêntico e sem apologias de qualquer espécie: Ferreira Pinto percorreu um mundo assaz diversificado e que passa pela Europa (versão portuguesa), pela África ora alegre ora angustiada, e, deste 1975, por estas ilhas, já também suas, no sentido também muito autêntico de pátria, de terra-mãe, de espaço agora definitivamente escolhido para um enraizamento referencial.

Toda a sua obra, a partir do momento em que os Açores se lhe tornam terreno íntimo, fica para sempre distintamente demarcada.

Ferreira Pinto já tem sido, e merecidamente, apreciado de ângulos diversos, quer com respeito à sua técnica quer com respeito à sua temática. Mas creio que esta sua recente etapa, esta agora associada a este espaço açoriano de cultura e ideias em que se tornou a Livraria SolMar em apenas dois anos de existência, traz consigo algo perfeitamente novo e bastante, uma vez mais, demarcador, ao mesmo tempo que se integra harmoniosamente na sua obra total, desde os dias felizes e infelizes de África – o quadro como texto, texto autónomo, por certo, mas com uma outra característica de que sempre se tem alimentado a arte mundial nas suas várias formas – texto decalcado ou, se quiserem, inspirado num outro texto. É uma afirmação artística, creio, que não havendo tanto de original para se dizer, o modo como se o poderá dizer é literalmente infindável, cada visão da totalidade universalizante que é a comum condição humana, parte de sensibilidades exclusivamente de cada artista, soma desse percurso individualizado mas sempre irmanado com todos os outros homens de uma época. Mais este facto de grande impulso temático e estético: Ferreira Pinto, sempre atento à literatura da sua terra insular (mas não insularizada), escolhe agora um autor com quem possivelmente conjuga sensibilidades de ordem vária: Tabucchi e o seu inesquecível Mulher de Porto Pim, essa outra original e comovida declaração de amor aos Açores. Por outro lado, é o olhar do outsider entendedor ou fascinado com a descoberta que marca estes dois, diria eu a partir deste momento, inseparáveis percursos pelas terras e pelo mar açorianos: o ter-se visto nos nossos particularíssimos localismos as ondas de vida e morte que são as do Homem por toda a parte, em toda a sua conhecida história, as obsessões de amar e devorar, de apego e de traição – eis o que me parecem ser os temas em Mulher de Porto Pim, versão Tabucchi ou versão Ferreira Pinto.

As baleias vêem o homem açoriano e nele reencontram toda a sua própria condição de morte, solidão e desenraizamento primordial? Ora, Ferreira Pinto vê ambos nessa condição também, mas as suas cores, os seus movimentos de força (toda a pintura de Ferreira Pinto é força, movimento e vida a contraporem-se à sempre presente ameaça da morte, quer no relacionamento dos homens quer na misteriosa força destrutiva que é a terra e o mar dos Açores) são um sorriso avisado. Mar bravo, baleias azuis a passearem-se nessas águas de morte e humor, uma mulher a desafiar os elementos – como quem nos mostra, pela milésima vez, que estamos todos, por entre tudo isso e todas essas ameaças, condenados à vida. Em suma, a magia da vida vivida nestas ilhas, a magia da arte num dos quadros deste nosso pintor.

“Não gostam – escreve Tabucchi em Uma baleia vê os homens – da água e têm medo dela, e não se compreende porque a frequentam. Também eles andam em bandos mas não levam as fêmeas e adivinha-se que elas estão algures, mas são sempre invisíveis. Às vezes cantam, mas só para si, e o seu canto não é um chamamento, mas uma forma de lamento angustiado. Cansam-se depressa, e quando cai a noite estendem-se sobre as pequenas ilhas que os transportam e talvez adormeçam ou olhem para a lua. Vão-se embora deslizando em silêncio e percebe-se que são tristes.”

Tanto Tabucchi como Ferreira Pinto parecem querer-nos dizer isso mesmo, mas também em essencial posição dialógica estão certamente a apontar mais um outro lado deste quadro demasiadamente humano: por entre os “montes de fogo, vento e solidão” nestas ilhas, está o triunfo inegável da humanidade – a sua sobrevivência e capacidade de convivência discreta e avisada, que as ilhas mais não são do que continentes perdidos e paradigmas dessa condição humana, a de todos nós. E, logo, que a vida é o mais bonito e inevitável impulso do homem e da sua história. Quando uma personagem, ou figura real, pois em Mulher de Porto Pim nunca sabemos de quem se trata com clareza, diz ao narrador identificavelmente italiano que todos já se foram para a América, e este responde que gosta muito dos Açores, acontece um glorioso momento de silêncio e ambiguidade. Como quem diz: você sabe que os Açores sem a sua gente nada valem e você sabe que sente saudades dessa sua gente e você sabe ainda que a mais dignificada resistência do homem ante os elementos da terra e ante a história será sempre a insistência nas possibilidades de vida.

É este também o percurso errante de Ferreira Pinto, é este o impulso fundamental da sua arte – uma cortesia respeitosa mas não derrotada à terra açoriana, um piscar de olho ao homem em sinal de que tudo é e deve ser aqui negociável, sobretudo a nossa sobrevivência.




Vamberto Freitas

Ponta Delgada, 23 Março 1993

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